Psicodélico: Cerimônias do chá

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Cerimônias do chá


Cerimônias do chá
por Roberto de Oliveira

Freqüentadora da escola espiritual Caminho do Coração, em Nazaré Paulista, diante de altar que mescla imagens hinduístas ao lado de garrafões do Santo Daime

O altar é de Ganesh, deus hindu do sucesso e da superação de obstáculos. Mas não só dele. Ladeando a imagem, garrafões de plástico guardam um líquido marrom e espesso. Um cheiro de incenso se mistura ao de rosas e lírios. Descalço, um senhor de barba e cabelos grisalhos, roupa branca, serve a bebida. Cerca de 200 fiéis se aproximam em fila indiana. O som oriental das cítaras é substituído por chocalhos indígenas. Mantras em sânscrito são sucedidos por hinos em português, que exaltam Jesus, a Virgem e a floresta amazônica. A cerimônia é hindu; o transe, do Santo Daime.

A bebida é um dos ingredientes do ritual que acontece ao menos uma vez por mês na escola espiritual Caminho do Coração, em Nazaré Paulista (56 km de SP). Psicólogo de formação, Sri Prem Baba, 42, é o mestre da cerimônia. Dois mentores guiam seus passos: o guru Sri Sri Hans Raj Maharajji, que vive na Índia, e o seringueiro brasileiro, neto de escravos, Raimundo Irineu Serra (1892-1971), o mestre Irineu, fundador da doutrina do Santo Daime.

Na zona sul de São Paulo, no Centro Espírita Sete Pedreiras, a miscigenação de crenças se repete, com orixás da umbanda, santos católicos e retratos de daimistas posicionados em lugares estratégicos do terreiro. A fusão resulta na umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com elementos da religião afro-brasileira.

Três vezes por mês, mulheres de um lado, homens do outro, fazem orações e entram na fila para tomar o daime. Ao som do atabaque, fiéis organizam uma roda de "gira". Começam a dançar e a cantar pontos de umbanda e hinários do Santo Daime.

O sincretismo que permeia as duas cenas pode ser encarado como um terceiro fenômeno de expansão do Santo Daime, diz Henrique Carneiro, professor no departamento de história da USP . Depois de ser "exportado" da floresta amazônica para os grandes centros urbanos brasileiros e, na seqüência, para o exterior, a bebida se transformou numa espécie de "cálice sagrado", entornado por outras religiões de cunho afro, cristão e oriental.

Prem Baba é um exemplo clássico do ecletismo religioso brasileiro. Passou pela umbanda, pelo candomblé e pelo budismo para, aos 19 anos, descobrir o daime. Em 1992, incorporou o chá em rituais religiosos orientais. "É uma coisa só. Pétalas de uma mesma flor", diz ele, que costuma repetir um preceito difundido entre os daimistas: "O daime é para todos. Mas nem todos são do daime".

Para fazer parte do grupo, não importam orientação espiritual, raça ou posição social, diz Prem Baba. Profissionais liberais, empresários, estudantes e donas-de-casa paulistanos se reúnem periodicamente para os rituais com chá no ashram (lugar de práticas) da escola espiritual Caminho do Coração. "Ele [o daime] é um instrumento de purificação do eu inferior e conexão com o superior. Permite relembrá-lo de sua natureza divina e abre as portas do ABC da espiritualidade."

Caboclos do chá
Para o antropólogo Edward MacRae, 61, da Universidade Federal da Bahia, assim como outras religiões, o Santo Daime também tem a propriedade de aglutinar elementos de outras crenças, como umbanda, traços indígenas, cristãos, afro e esotéricos, ocidentais ou orientais.

"A ayahuasca facilita a experiência mística. E é justamente essa experiência, sem a intermediação da figura de um sacerdote, que está colaborando para a sua expansão", diz ele, autor de "Guiado pela Lua - Xamanismo e Uso Ritual da Ayahuasca no Culto do Santo Daime" (ed. Brasiliense).

Cerca de 30 minutos depois da ingestão do chá, praticantes da umbandaime, vestidos de branco, começam a "abrir a banca", no momento das incorporações. É quando as entidades da umbanda começam a se manifestar, segundo a mãe-de-santo Maria Natalina, 57, a Madrinha.

A ayahuasca proporciona sensibilidade maior. É um instrumento de contato superior com os orixás", diz ela. No centro Sete Pedreiras, o culto dura oito horas -das 14h às 22h. Geralmente, aos domingos. Os freqüentadores chegam a participar de quatro "despachos de daime", servidos em copo plástico.

Coordenador do Conub (Conselho Nacional da Umbanda do Brasil) no Estado de São Paulo, Pai Medeiros, 39, não condena a mistura. Ele diz que a umbanda é inclusiva, abrange muitas vertentes e que a umbandaime é uma delas. "Qualquer forma de manifestação do sagrado é respeitada."

Freqüentadora da umbanda há seis anos, a produtora de eventos Bia de Souza, 24, passou a participar das sessões de umbandaime neste ano. "O chá propicia uma maior integração com a religião. Abriu meus canais de percepção e chakras", diz. Segundo ela, no começo, por conta de reações como vômitos e diarréia -as chamadas "peias"-, a experiência foi dolorosa. "Uma dor na alma que faz parte da limpeza", acha.

Outra etapa da conversão é pagar por ela. Afro, oriental ou cristão, onde o daime é servido cobra-se uma taxa de "contribuição" para custear a bebida, que pode variar de R$ 15 a R$ 100 (com alimentação e hospedagem).

"Os orixás do candomblé e da umbanda têm origem na natureza. O princípio do daime também vem dela", diz Madrinha, que realizou o primeiro ritual de umbandaime em seu centro há dois anos.

Preocupações ecológicas entre daimistas e fiéis de outras religiões que fazem uso da ayahuasca ganham, aqui, conotação religiosa. "É da floresta amazônica que vêm o cipó e as folhas, considerados sagrados, a ponte com Deus. Em tempos de aquecimento global, se o daimista não tem consciência ecológica, como vai atingir a sustentabilidade espiritual?", questiona Wladimyr Sena Araújo, 39, antropólogo e historiador, autor de ''Navegando sobre as Ondas do Daime - História, Cosmologia e Ritual da Barquinha'' (editora Unicamp).

Hare daimistas
Apesar de a ayahuasca ser classificada como substância psicoativa alucinógena, seu cultivo, preparo e uso religioso são garantidos pela Constituição Federal, que defende a liberdade de culto.

Monja tibetana, Ani Sherab, 42, budista desde os 18, acha que o daime é "algo sagrado do qual muitos fazem uso profano". "As pessoas devem ter um preparo antes, durante e depois de tomar o chá", diz ela, que é usuária da bebida.

Ani coordena a escola de budismo tibetano Dag Shangpa Kagyu, em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo. Diz que não buscou o daime. "Conheci por intermédio de um daimista que fazia um trabalho de prática de budismo comigo."

Ela conta que viu na doutrina algo autêntico e decidiu investigá-la. "O Santo Daime se utiliza de uma linguagem teísta, enquanto o budismo é o contrário. Mas não enfrentei resistência", diz a monja. Ani descreve a experiência como uma "visão do passado, do futuro e dos sonhos".

Questionada sobre qual a colaboração do daime em sua busca espiritual, a monja diz que, para ela, o chá "oferece mais clareza para expressar e reconhecer a verdade". "Com o daime, recebo muitas bênçãos e ensinamentos dos budas."

Mas Ani está em dúvida se continuará a usá-lo. Por isso, diz que irá consultar o rinpoche (título que significa precioso e, geralmente, é dado aos grandes mestres do budismo tibetano) Nanka Norbu, que deve vir ao Brasil neste mês. O mestre decidirá por ela.

Lama Tsering, 53, do budismo vajrayana, coordenadora do templo Odsal Ling, em São Paulo, diz que "não há regras fixas no budismo, mas é fortemente sugerido que se evite qualquer substância que altere a percepção".

Apesar de ser comum entre as religiões orientais a reverência aos mestres, nem todas funcionam assim. Líderes das comunidade hare krishna, por exemplo, desaprovam o daime, mas não negam que alguns membros consumam o chá.

Chandramukha Swami, 50, autoridade espiritual dos hares em São Paulo e no Rio, diz que a crença exige padrão elevado de conduta e comportamento. Mas, no meio do percurso, alguns podem ter dificuldade e buscam alternativas, como uma "bengala".

Nem todos os fiéis concordam. Pariksit Dasa, 45, vendedor; Pandita, 51, professor de português; e o motorista Rama Parsua, 40, já participaram de rituais de daime fora dos templos hare krishna e fazem uso esporádico da bebida.

"O daime leva a um outro estágio de consciência. É uma comunhão com a natureza", diz Pariksit. "Ele reforçou a minha fé e compreensão."

Para o professor Pandita, Krishna se revela de formas diferentes, dependendo de cada povo e de cada cultura. "O daime pode ser uma delas." Pariksit diz que faz uso esporádico do chá em casa. "Busco a ayahuasca para cura física e emocional."

Rama Putra, 42, ex-administrador da fazenda Nova Gokula, a maior comunidade hare krishna do Brasil, explica que a prática de mantras e ioga entre os hares não requer nenhum elemento externo para complementá-la. Mas, se algum hare krishna, fora dos templos, resolver tomar o daime, ele não será excomungado nem excluído, afirma Rama.

Na cultura da Índia antiga, continua ele, métodos de elevação espiritual, tais como os shivaistas, seguidores do tantra, faziam uso da maconha. "O problema é que muitos se aproximam desses processos para uso pervertido. Não para elevação espiritual, mas para o gozo egoísta dos sentidos."

Uma das características das crenças que proliferam pelos grandes centros é a valorização da experiência individual como forma de negar as instituições. "É uma mudança até na percepção de Deus, que cada um pode buscar dentro de si", diz o antropólogo Silas Guerriero, 49, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC-SP. "Se a verdade está dentro dele, o uso de elementos simbólicos e importados é apenas um meio." O sociólogo Antônio Flávio Pierucci, professor da USP que pesquisa religião, avalia que, hoje, há uma tendência à imitação entre as religiões. Na tentativa de competirem umas com as outras, elas acabam se anulando, copiando fórmulas e formatos e, com isso, perdem sua verdadeira identidade. "É como ocorre no comércio alimentício. Tem o McDonald's e o Bob's", diz. "Isso ocorre porque é muito fácil mudar de religião hoje em dia, sob o marketing intenso na TV e, principalmente, na web."

Segundo o professor, por curiosidade, muitos fiéis acabam procurando essas novas religiões sem motivo e desconhecendo as distinções entre uma e outra. "No fundo, todas alegam que Deus é um só. Mas, na verdade, o que existe é uma guerra entre deuses."

Santo Daime

a origem
O movimento religioso do Santo Daime começou no interior da floresta amazônica na década de 30, com o maranhense neto de escravos Raimundo Irineu Serra (1892-1971). Ele teria passado por uma epifania e recebido a revelação de uma doutrina depois de tomar o chá de ayahuasca, chamado pelos índios de "vinho das almas" ou "vinho dos mortos", na língua quéchua .

O seringueiro, que ficaria conhecido como mestre Irineu, recebeu a revelação de uma senhora que ele identificou como a Rainha da Floresta, entendida mais tarde como a Virgem da Conceição ou Nossa Senhora da Conceição .

Ninguém sabe ao certo quem foi o primeiro povo a preparar e a beber o daime de forma ritualística. Há registro de seu uso por cerca de 80 tribos amazônicas. Ele também é usado no Peru, na Bolívia, no Equador, na Colômbia, na Venezuela, bem como por povos do México pré-colombiano .

No início dos anos 40, mestre Irineu fundou no Acre o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo, pioneiro da doutrina do Santo Daime
O nome Santo Daime surgiu das invocações feitas antes de tomar o chá: "dai-me luz, dai-me força, dai-me amor" .

o preparo do chá
De origem indígena, a ayahuasca é preparada de forma ritualística. O chamado "feitio" é obtido a partir da mistura de duas plantas.

As mulheres colhem e limpam, uma a uma, as folhas de chacrona (Psychotria viridis), também conhecida como rainha, apresentada como a "energia feminina" do chá, que traz a luz para o daimista .

Os homens cortam, limpam e maceram o cipó jagube (Banisteriopsis caapi), a "energia masculina", para depois misturá-lo às folhas de chacrona. Durante todo o processo, todos entoam hinos .

Depois de misturados, cipó e folhas são fervidos por cerca de 12 horas em grandes panelas, numa fornalha, antes de serem acondicionados em garrafas, muitas vezes, expostas diante de fotos do fundador da comunidade .

O preparo pode durar semanas ou mais de um mês. É ininterrupto porque há turnos de fiéis trabalhando.

O Brasil permite o consumo da ayahuasca apenas em cerimônias religiosas. Apesar de ter seu cultivo, preparo e uso garantidos pela Constituição Federal, o daime é considerado uma substância psicoativa (ou alucinógena)

a doutrina
O Santo Daime é uma doutrina apoiada no catolicismo popular, mas também tem entre suas matrizes a pajelança indígena e cabocla, a presença espírita kardecista e elementos afro-brasileiros .

Os hinos do mestre Irineu têm forte ênfase nos ensinamentos cristãos e numa nova leitura dos Evangelhos à luz do Santo Daime, para afirmar, nos tempos de hoje, os mesmos princípios de amor, caridade e fraternidade. Antes e depois do ritual são rezados o pai-nosso, a ave-maria e a salve-rainha, além de orações de origem esotérica e espírita, entre outras rezas .

as propriedades
Os adeptos da doutrina afirmam que o chá tem propriedades que promovem a expansão da consciência. Atualmente, emprega-se o neologismo "enteógeno" ("aquilo que gera a experiência interna do Divino") para classificá-lo .

A idéia é que a maioria das pessoas está ''entupida'' demais com as preocupações cotidianas e materiais para ter uma experiência direta com o espírito .

O daime abriria essa porta, mas, muitas vezes, é necessário fazer antes uma "limpeza". Por isso, acreditam, é possível que, em algumas ocasiões, mesmo os adeptos mais experientes, vomitem ou tenham fortes diarréias durante os rituais, que podem se estender por até 15 horas. Também são freqüentes crises de choro ou de riso .

Fontes: Edward MacRae, antropólogo, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia); Gê Marques, cientista da religião, do grupo de estudos religiosos da PUC-SP; e Wladimyr Sena Araújo, antropólogo e historiador, autor de "Navegando sobre as Ondas do Daime - Historia, Cosmologia e Ritual da Barquinha" (editora Unicamp)

Busca por Saberes da Selva tem Relação com a Crise Ecológica
por Henrique Carneiro
Muitos fenômenos religiosos atuais vêm se caracterizando por traços de purismo, fundamentalismo e intolerância. Nesse sentido, é reconfortante ver que no Brasil, como já ocorrera com o fermento do misticismo afro-brasileiro, repete-se nas últimas décadas, a partir de uma matriz de origem indígena amazônica -a dos cultos da ayahuasca-, um processo de mestiçagem cultural que vem dando origem a diversas formas híbridas de religiosidade, marcadas por grande permeabilidade e plasticidade, onde divindades diversas convivem sem maiores atritos.
O psicólogo William James, em 1902, já identificava na força da ebriedade o poder de estimular as faculdades místicas nos homens. Assim como o vinho de uva acompanhou a difusão da cristianização, um outro vinho, desta vez indígena, o ''cipó das almas'' (uma das traduções possíveis da palavra ayahuasca, de provável origem quéchua), vem sendo o veículo psicoativo sagrado de um xamanismo abrasileirado com traços caboclos que alcançou abrangência global. Não são apenas os cultos televangélicos das igrejas da prosperidade material que o nosso país tem exportado para todo o mundo, mas também as religiões ayahuasqueiras em suas múltiplas ramificações.
A mais conhecida é o Santo Daime, que, nascida no Acre na década de 1930, alcançou os centros urbanos desde os anos 80 e, uma década mais tarde, já possuía adeptos organizados em países que iam do Japão aos da Europa. A União do Vegetal (UDV) notabilizou-se ao obter um reconhecimento oficial da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 2006, para a sua sucursal no Estado do Novo México.
A importação das religiões orientais, especialmente o budismo e o hinduísmo, já havia marcado a contracultura juvenil dos anos 60, trazendo uma ampliação da influência desses cultos que extravasou o campo de sua devoção estrita para incorporar elementos mais amplos na cultura de massas ocidental, tais como o vegetarianismo, a meditação, as técnicas de ioga, o uso de incensos e de substâncias psicodélicas.
Da mesma forma, também ocorreram processos de vulgarização e mercantilização desses cultos, que a escritora indiana Gita Mehta denominou ironicamente de ''carma-cola'', e uma próspera economia do êxtase, da meditação e da busca da salvação cresceu tanto na própria Índia como nos países ocidentais -o que deve servir como alerta para os espíritos mais céticos dos riscos de um reencantamento do mundo que também pode ser burocrático e mercantil.
Se o Brasil emerge hoje como nova meca de um impulso de devoção alternativa e de busca dos saberes arcaicos da selva, com o uso de plantas de poder descobertas pelo xamanismo amazônico, isso não é dissociável da expansão de uma nova consciência global diante da crise ecológica, da destruição da floresta e do esgotamento de um modelo agroindustrial insustentável.
O fato de essa cultura de origem xamânica estar hoje sincretizada com várias outras tradições religiosas e de ter como seu denominador comum o uso da ayahuasca pode ter uma rica influência na constituição de novas formas de religiosidade, com a esperança de que mantenham o apreço pela tolerância, algo que se enraíza na luta contra preconceitos, tabus e perseguições que essas religiões tiveram de travar, como também ocorreu em tempos não tão distantes com o candomblé e a umbanda, tanto diante do Estado como das grandes religiões, já consagradas.
Henrique Carneiro é professor no departamento de história da USP e autor de ''Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas'' (Campus/Elsevier).

Nenhum comentário: